Com um Grillo na cuca

Com um Grillo na cuca

19 de julho de 2014 0 Por GUILHERME CORRÊA

Não tive a sorte de conhecer Marco De Bartoli pessoalmente, mas amigos próximos me garantiram que Marco foi uma das pessoas mais incríveis da história do vinho italiano, um rebelde que recolocou o Marsala entre os grandes vinhos fortificados do mundo, após ter sua imagem praticamente destruída no século passado por uma combinação de legislação permissiva e produtores industriais.

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Um mito chamado Marco De Bartoli

Seu filho Sebastiano, todavia, já dividiu comigo algumas taças de vinho. Seus olhos brilham diante do legado deixado pelo pai, e ele não titubeia em assumir com paixão uma das vinícolas mais incríveis da Sicília e da Itália, a De Bartoli.

Desde que bebi pela primeira vez um Vecchio Samperi, meu coração bate forte pelos vinhos da família De Bartoli. Este soberbo “vino da meditazione” foi concebido nos moldes do perpetuum, vinho de “solera” que se fazia na região antes da chegada em 1770 do inglês John Woodhouse, criador do Marsala fortificado.

O Vecchio Samperi, vinho que revolucionou a região de Marsala no início da década de 80, não ostentava os status de um Marsala DOC, justamente pelo fato de não ser fortificado… Uma ironia cruel, já que misturas tenebrosas de Marsala de 5ª categoria com ovos, amêndoas ou chocolate, estes sim, eram Marsalas!!! Marco de Bartoli, que levou uma vida como piloto de corrida, desde que assumiu este hercúleo desafio de mostrar ao mundo o potencial de um verdadeiro Marsala, enchia seu carro de caixas de vinho e saia por todos os cantos visitando restaurantes e enoteche, abrindo garrafas e apregoando suas convicções.

Uma delas era que a uva Grillo era um vitigno grandioso, insubstituível para lograr um grande Marsala. Não a super produtiva e neutra Catarratto, que roubou a cena no pós-filoxera na Sicília, para atender a indústria do Marsala-vinho-de-cozinha. Marco acreditava que a Grillo era tão siciliana como ele próprio, e já cultivada pelos fenícios na região num passado distante.

Sou da Sicília, me faça o favor!!!

Sou da Sicília, me faça o favor!!!

Para mim a Grillo tinha origem pugliese, havia estudado isto numa feita, na Guida ai Vitigno d’Italia da Slow Food Editore. Este guia maravilhoso enaltece a vocação da Grillo como pilar para um grande Marsala, e também vinificado em purezza, quando gera vinhos “intensos na cor palha, com perfumes evoluídos de flores secas e de feno, quente no sabor, seco e ligeiramente tânico, com uma boa acidez que o deixa particularmente apto ao envelhecimento”.

Mas Marco sabia das coisas. Não precisou esperar o lançamento do Wine Grapes da Jancis, da Julia e do Vouillamoz para confirmar o caráter autóctone da Grillo: “um cruzamento espontâneo da Catarratto Bianco com a Muscat de Alexandria (a Zibibbo local)”, ou seja, “o seu parentesco claramente conduz o seu local de nascença à Sicília”, segundo a referida bíblia da ampelografia.  Pronto, meu Grillo na cuca foi dirimido!

A intrepidez de Marco, já coadjuvado pelos filhos Sebastiano, Renato e Josephine, levou ao lançamento do primeiro Grillo vinificado com ambição para ser um grande branco seco, em 1990. O Grappoli del Grillo é um branco memorável, um dos maiores de todo o sul da Itália. Nasce de vinhedos conduzidos em Guyot com baixos rendimentos de 35 hl/ha – a uva é bastante vigorosa, por isto é importante limitar a produtividade na vinha -, plantados em solos arenosos ricos em calcário, na Contrada Samperi no oeste da Sicília.  Vinificado com leveduras selvagens, termina sua fermentação em grandes tonneaux e fusti de 1.000 litros de carvalho francês, onde permanece por um longo período interagindo com as lias.

Grappoli_del_GrilloTenho degustado sempre que posso este vinho. Ele merece estas linhas e muito mais, não somente pelo que representa de inovação, ou de um capítulo a mais na história emocionante dos De Bartoli, mas pelo seu valor intrínseco. A sua cor é um limão intenso, com um brilho que fomenta água na boca. Seu olfato chocante me faz lembrar o caráter savoury intenso de um grande Champagne longamente amadurecido sobre as lias, como uma Krug velha que já perdeu um pouco da pungência carbônica. Mas também estão lá a desfilar o limão siciliano confitado, as flores amarelas secas, o feno e as amêndoas tostadas. A boca é para dar aula do que significa sapidez em um vinho, com a inexorável estrutura que só a Grillo pode gerar, dando sustentação a estas arestas fresco-sápidas. Ainda não fui austero o suficiente para separar algumas garrafas deste 2011 à guarda, na minha adega, mas acredito que sublimará depois de uns 10 aninhos de garrafa.

Salgado como um queijo caprino, este Grillo está muito bem no papel de aperitivo per se, mas pode trazer aquela dimensão umami a diversos pratos, como um sicilianíssimo spaghetti con le sarde (com sardinhas frescas refogadas, finocchio selvatico cozido, pinoli, passas e açafrão).