Orange Wine Quest – III
Visitar Josko Gravner no seu reino de Oslávia é o ápice na carreira de qualquer amante do vinho de verdade, o pináculo da emoção de escutar o vinhateiro mais sábio e revolucionário e ao mesmo tempo o mais humilde do mundo, é a culminação da alegria de saber que nem tudo neste mundo é governado pelos interesses comerciais, que é possível sonhar!!!
Quando se visita Josko, o melhor é deixar-se levar pelos sentidos, guardar o caderno de provas, o bloquinho de anotações, e sentir. Sentir a sua “anima” fluir em uníssono com a dele, num ambiente mágico de tirar o fôlego, de arrancar as lágrimas e aquele “uaaaau” que vem lá de dentro do seu peito.
A SIMPLICIDADE É TUDO NO FINAL DAS CONTAS
Quando o meu caminho cruzou com o de Josko a primeira vez, em uma degustação em San Marino em 1997, me espantou a sua desafetação e candura ao se apresentar para um grupo de mais de cem pessoas que aguardava o “melhor produtor de vinhos brancos da Itália” no palco: “sou um pequeno vinhateiro da fronteira da Itália com a Eslovênia”. “O que é isso? Você é o cara, o mais premiado em todos os guias italianos, o enólogo com alocação garantida de cada mililitro de vinho que coloca no mercado!!!” pensei, tentando compartilhar minha inquietação com os vizinhos de prova.
Mas Josko é assim. Alguém que nos abala com a sua perturbadora modéstia. A ponto de não deixar a vaidade de estar na crista da onda nos anos 80 obnubilar o seu rumo que parecia incontornável de produzir grandes vinhos técnicos, “a exata tipologia que o mercado pedia”. Zarpou para a Califórnia em 1987, e na volta, confidenciou à sua esposa: “esta viagem foi fundamental para mim”, e aí imagino a doce Maria voltando-se atônita antes da frase ser completada por Josko: “aprendi o que não se deve fazer”.
E dessa forma os tanques de inox, as pequenas barricas e todos os artifícios da enologia moderna acabaram banidos da cantina Gravner nos anos 90, e como era de se esperar, seus vinhos foram sumariamente excluídos dos guias ou severamente desaprovados pelos críticos que sempre os aclamaram.
O ponto de inflexão na vida de Josko estava próximo, e ao contrário de sua malfadada jornada à Califórnia, as seis viagens à República da Geórgia em 2000 foram reveladoras, descortinaram os novos rumos a seguir: voltar às origens da vitivinicultura em busca da simplicidade de se elaborar um vinho prístino, autêntico, transparente ao terroir.
Dou a palavra então a Josko, as suas frases ainda ecoam na minha alma, e que ele me perdoe se não forem ipsis litteris, contemplativo como eu estava naquela visita tão inebriante…
“A simplicidade é tudo, ela é sinônimo de qualidade no vinho”
“Eu fui para a Geórgia para entender o vinho. Entender o vinho é entender a sua história”
“O Cáucaso tem 5.000 anos de tradição. Quem busca água pura deve ir à nascente, não à foz de um rio”
“Na escola de enologia moderna se aprende a fazer um vinho sem defeitos. Mas um vinho não deve apenas não ter defeitos, deve ter alma”
“Não existe vinho natural ou industrial. Existe vinho. Se é vinho, é natural, se não é natural, não é vinho”
“O que se chama atualmente de mundo do vinho está perdendo a ética”
“Eu mesmo caí na armadilha de usar tanques de inox, hoje me envergonho, mas erros são necessários na nossa trajetória. Parei com os metais”
“Certamente a tecnologia nos proporcionou coisas incríveis, mas em relação aos alimentos e ao vinho, sou totalmente contrário, pois eles terminam no nosso estômago. Dali em diante, se não forem as bactérias, as leveduras e os enzimas, não há vida. Não uso então de nenhum artifício que possa inibir a ação destes elementos”
“Além de uva, o único ingrediente que entra na minha cantina é um pouco de enxofre. Achei que poderia fazer vinho bom sem sulfurosa, mas estava errado. A razão é histórica: negar o uso de enxofre é degradar 2.000 anos de luta dos homens para fazer bons vinhos, desde que descobriram esta prática”
“O produto primário da uva é o vinagre, o mosto em fermentação gera um pouco de sulfurosa como autodefesa e parece pedir: dê-me mais um pouco que eu te farei um bom vinho”
“Em busca do recipiente idôneo para desenvolver o vinho, cheguei nas ânforas. O porquê das ânforas? Simples: a terra é necessária para nascer a uva boa, e a terra é novamente necessária para nascer o vinho. O círculo se fecha com uma simplicidade desconcertante”
“As ânforas eliminam a participação humana, os controles de temperatura, de acidez, etc. Elas amplificam a qualidade das uvas que você colheu, para o bem ou para o mal”
“As ânforas de terracota da Geórgia não possuem cádmio e chumbo na composição”
“Há 1.300 anos surgiram os barris de madeira, antes os vinhos nasciam em ânforas. Os recipientes modernos surgiram há décadas e serão os primeiros a serem eliminados”
“Na cantina não se melhora nada, a uva tem que ser boa, tem que ser de colina, de áreas não irrigadas. Se 85% do vinho é água, é um contrassenso se esta água não for natural. A seca é fundamental para as raízes buscarem água na profundidade, onde acabam sugando a mineralidade”
“Uma uva não está madura quando atingiu seu equilíbrio de açúcar e acidez, como ensinam nas escolas de enologia. Tal como um rapaz de 18 anos é um adulto, mas não está maduro ainda. A maturidade leva tempo”
“As minhas uvas são colhidas tardiamente porque precisam de maturidade para gerar caráter e álcool necessário para um longo período de amadurecimento que se seguirá depois”
“A Botrytis na sua forma nobre é hoje muito importante para meu vinho. Aprendi a lutar contra ela na escola, e não escutei os ensinamentos do meu pai”
“Meu pai Joseph me ensinou que a grande uva do Collio era a Ribolla. Demorei a me convencer e experimentei muito, mas hoje reconheço plenamente que ele tinha total razão”
“O grande vinho, na origem de tudo, era o branco. Isto porque o branco pode ficar meses em contato com as suas cascas, que guardam a essência da terra, enquanto que os tintos aguentam no máximo semanas de maceração”
“As uvas desengaçadas são colocadas nas ânforas. A fermentação é espontânea com leveduras selvagens. Neste período são feitas de 4 a 5 follature (abaixamento manual do chapéu de sólidos) até o fim da malolática. As ânforas são então cobertas e as cascas e os sólidos ficam a macerar de 5 a 7 meses. São então prensadas e o vinho levado às botti de carvalho da Eslavônia, onde amadurece por até 7 anos”
“7 anos é um número mágico, quando a vida sempre se renova”
“Orange wines? Meus vinhos não são laranjas! Laranja não significa vida, âmbar sim!”
“O vinho é como uma criança, absorve nosso humor, nossos gestos, nosso caráter, não há como enganá-lo”
“O vinho é o pensamento da pessoa que o põe no mundo. Somente depois dos 60 anos alguém faz um vinho bom. A maturidade é fundamental”
“Na minha vida eu mudei quatro vezes a forma de vinificar. Mas se alguém perguntar qual será a próxima maneira, digo que não haverá. Pois cheguei na nascente, além dela não se vai”